domingo, 22 de maio de 2016

Texto com que participei no “Concurso Internacional Onkyo Braille”, tendo sido um dos escolhidos para representar o nosso país.

Sandra Jordão, Feminino
Leiria, Portugal



O menino cego

Desde criança que me impressiona imenso esta palavra: B R A I L L E. Lembro-me de a ter ouvido pela primeira vez na escola primária, quando  “o menino cego”– como era chamado – veio para a minha sala a meio do ano letivo. Ele fazia-se acompanhar de uma bengala cujo som rapidamente se tornou parte do ambiente escolar. A princípio não olhei muito para ele, não o encarava bem de frente porque me sentia embaraçada, mas um dia meti conversa com ele e com a minha mão elevei- lhe um pouco o queixo. Pude ver então, os seus olhos grandes e brancos que me deixaram bastante impressionada: duas bolas salientes e brilhantes como a lua que me fizeram dar um passo atrás e derrubar o copo dos lápis da mesa da professora. Nunca vira ninguém assim, mas envergonhei-me pela minha reação.
“O menino cego”apercebendo-se do meu desconforto, pelo movimento repentino que fiz, tentou acalmar- me mas tudo o que consegui foi afastar- me. A partir desse dia, sempre que o via, disfarçava o incómodo que aqueles olhos me causavam, no entanto, penso que ele se apercebia disso e com o tempo deixou de me falar.
No recreio, ele costumava ficar sentado num banco debaixo da árvore grande e eu observava-o ao longe. Ele tirava da mochila um livro que colocava no colo e, com os seus pequenos dedos percorria as folhas, uma a uma, com espantosa rapidez. Então, um dia, ganhei coragem e aproximei-me dele e perguntei-lhe o que estava a fazer com aquele livro com as páginas em branco. Respondeu-me que lia. Então sentei-me a seu lado e fiquei a ouvi-lo ler em voz alta. Mas para mim era um enigma, como poderia ele ler sem letras?
Foi então que me disse: “Estas letras são mágicas! E, agarrando-me na mão, colocou-a em cima do livro. Com os meus dedos pude  sentir os pontos elevados na folha de papel e fechei os olhos. O meu amigo continuou a ler e eu fiquei maravilhada.
Ele simplesmente sorriu para mim e explicou-me com como eu poderia ler apenas pelo toque naqueles pontinhos, a escrita dos cegos - o  B R A I L L E.  O meu amigo aprendeu a ler Braille em três semanas, tal era a sua ânsia de aprender a ler sem ter que depender de ninguém. Para ele a leitura era o que mais o fascinava, pois sentia-se igual a toda a gente.
Foi o meu primeiro contato com essa escrita mágica que nos aproximou um do outro, sem diferenças ou limitações.
“O menino cego” ensinou-me a valorizar os livros, o cheiro do papel, da tinta, o tacto, a textura, o folhear folha a folha, o sentir cada palavra, que é como entrar num portal e do lado de lá encontrar um mundo completamente novo e mágico, onde somos todos iguais.
Ele costumava dizer-me: “Ler  B R A I L L E é a forma mágica de se fazer transportar para um novo mundo, o mundo dos sonhos, do conhecimento, traduzido em pequenos pontos palpáveis e sentidos nas pontas dos dedos!”.
O B R A I L L E abriu- me os olhos para uma realidade que eu não conhecia, fechar os olhos e sentir nas folhas de papel os relevos, a escrita, comunicar  para além do que é visível aos olhos, mas acima de tudo, visível no coração, através dos outros sentidos.
Nunca mais vi o meu amigo cego, porque ele mudou de residência e perdi-lhe o rasto, mas também nunca mais me esqueci dos momentos que passámos juntos a ler e a sonhar.
Muitos anos mais tarde, era eu então mãe pela terceira vez, realizei um sonho que me acompanhava desde a infância ao publicar o meu primeiro livro infantil e comecei, em part-time, a visitar escolas e jardins de infância a contar a minha história aos meninos e a partilhar com eles os meus sonhos.
Nessa caminhada presenciei coisas maravilhosas, como um dia,  estando à  conversa com as crianças, houve uma que me disse: “mas os meninos cegos não podem ler a tua história!” De repente, fui acometida por um flash inesperado daquela recordação do meu amigo de infância, que passava os dias a ler com a ponta dos dedos. Tive muita vontade de fazer o B R A I L L E e proporcionar às crianças momentos felizes com a minha hitória e na procura incessante dos meios para levar a cabo esta tarefa, encontrei pessoas que gostaram da minha ideia e que tornaram o meu projeto uma realidade.
Os meus livros estão hoje à disposição das crianças nas Acapos de Portugal e nas bibliotecas escolares, mas muito me espantou ouvir dizer que o B R A I L L E está a cair em desuso, talvez pelo facto da tecnologia estar de tal forma avançada que ler um livro online ou ouvi-lo em áudio são, talvez,  as formas mais procuradas e mais rápidas de ler, o que para mim é inconcebível, pois adquiri o gosto pelos livros em papel desde a infância e não imagino num mundo sem livros, sem folhear as páginas e sentir-lhes o cheiro e a textura.
 No entanto, também recebi a notícia num Centro para Cegos,  que uma criança que normalmente “fugia” ao B R A I L L E, requisitou o meu livro para ler em casa, o que me deixou sensibilizada e orgulhosa, por estar a fazer algo positivo pelo B R A I L L E.
Outra situação que me deixou muito feliz e emocionada foi no dia em que estive na companhia dum grupo de crianças e jovens cegos, tendo um  menino me  agarrado  na mão por três vezes vezes, levando-a ao seu rosto e, na terceira vez disse baixinho para mim: “gosto muito de ti!”, outra  criança que tocou no desenho da personagem principal (em relevo) e disse: “Olha, ela está toda despenteada!”, ao que todos se riram. Houve uma menina no grupo que leu para nós a minha história e no final contou-me que havia aprendido a ler o braille em 3 semanas, tal como o meu amigo. Também para ela o  cheiro, a textura e o sentir o folhear das páginas era imprescindível e sem comparação aos livros online: “nada se compara a sentir os pontinhos com os dedos e a mensagem surgir como por magia; códigos decifrados que desvendam histórias. Indescritível e incomparável”– disse-me ela.


E tal como “o menino cego”, também ela tinha duas bolas brancas nos olhos, mas desta vez não me causou qualquer outro sentimento a não ser o de cumplicidade e igualdade,  pois tal como ela eu adoro os livros!

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